quinta-feira, 6 de outubro de 2011

You're innocent when you dream

Já me peguei algumas vezes pensando que gostaria de voltar a ser criança. Mas não no sentido de retornar ao passado, à minha infância, isso não. Tampouco gostaria de voltar a um momento em que não trabalhava ou não possuía responsabilidades porque gosto de ambos. Mesmo porque, de certo modo, não possuía muita liberdade e também a aprecio muito. Em outras palavras, quando se é criança, há restrições demais e autonomia de menos. O que invejo nas crianças e desejo intimamente voltar a sentir e possuir, é o deslumbramento diante da vida e a inocência. Estar presente na vida com simplicidade, olhar para as coisas como se fosse a primeira vez, entregar-se às experiências como se fosse a última. É isso que gostaria de repetir, dia após dia, minuto a minuto. Mas o instante nos escapa. E o real nos atropela.
O 'mundo adulto' é muito estranho, carregado de códigos de comportamento de uma complexidade desconcertante, cercado de regras morais e gabaritos sociais e um manual de como driblá-los sem punições, quer seja nas macro ou nas micropolíticas.  Embora não vivamos numa ditadura, somos submetidos às ditaduras das relações, da cultura, da beleza, do sucesso e por aí afora. Há pouco espaço para a espontaneidade, honestidade e a sinceridade. Para ser simplesmente quem se é. É reservado aos muito jovens, aos muito velhos, aos loucos e aos santos, viver pelo que se é, dizer o que se pensa e sentir o que se sente da forma mais natural. É possível que nem a estes, já que todos nós vivemos nessa imensa Matrix. 
Então me agarro aos breves momentos em que me sinto criança novamente, no sentido de inocência, descoberta e risco, pisando nas pedras sobre o rio, me equilibrando para não cair e me afogar. Há aquele momento em que o medo se insinua, seguido pela emoção mais pura quando se descobre que você pode mergulhar e voltar a tona. E que, mesmo que você morra naquele momento, morrerá feliz. Creio que é por esta sensação que as crianças se arriscam tantas vezes (ou se arriscavam, quando não eram tão cerceadas). E são chamadas de inconsequentes e irresponsáveis, nunca de inocentes.
Pois bem, todos somos inocentes quando sonhamos. 
Sempre gostei de pisar na terra, enfiar os pés na areia e construir castelos, escalar paredes, subir em árvores, correr e saltar. De contemplar, criando desenhos com os padrões dos azulejos e manchas na parede. De olhar através da janela o cimo da cabeça dos transeuntes e criar enredos. De viajar pelas ruas de Paris a bordo da bicicleta ergométrica de minhas irmãs, carregando comigo algumas peças de roupa na maleta da Olivetti. E de brincar com os pinos de jogos, como se fossem pessoinhas. E apreciava o simples exercício de me esgueirar em busca de uma réstia de sol, como uma gata, e dormitar por uns instantes. E de comer sem restrições e sem culpa, sem pensar se me faria mal, o que certamente rendeu alguns desconfortos físicos momentâneos. Não ligava para os joelhos ralados e exibia as cicatrizes como troféus. Amava as pessoas e contabilizava amigos, mas havia sempre uma 'melhor amiga' e um 'principezinho encantado' que ia mudando de identidade, sem apegos. 
Descobri o sentido de crueldade muito cedo e não só vendo um filme - cujo título não me recordo - em que um grupo de meninos prendiam asas nos braços de outro, que dizia poder voar, e o atiravam no precipício. Ou assistindo ao lacaio, interpretado por Michael York no filme "Adoráveis Sedutores", seduzir todos os membros de uma família aristocrata e matar quem se interpusesse no seu caminho. A crueldade e a malícia humana também se apresentaram no cotidiano, na observação do dito 'mundo adulto', no comportamento das pessoas. E continuo a me surpreender com ela, ainda que não seja mais tão inocente. 
Brinquei muito, até o momento em que deixei para trás as pessoinhas de pinos, a ergométrica e a maletinha, mas não as histórias. E ainda gosto de pisar na terra, enfiar os pés na areia, construir, escalar, correr e saltar. Ainda amo as árvores e as pessoas e gosto de contemplar, criando desenhos com os padrões dos azulejos e manchas na parede; de olhar através da janela sobre a cabeça dos transeuntes e de criar enredos; de me esgueirar em busca de uma réstia de sol. Adoro contabilizar amigos e não me importo de me machucar: tenho orgulho de minhas cicatrizes tatuadas no corpo e na alma.