segunda-feira, 14 de maio de 2012

Vida e arte na esfera pública e privada

Diane Arbus - Autorretrato
Lembro-me quando, há anos, fui à exposição de meu professor de Filosofia da Arte, RES e me surpreendi ao deparar - em uma de suas "cabanas" - com uma foto que eu tirara de uma jovem mulher de costas, durante uma festa de família, colada sobre a capa de um dos seus cadernos, sem referência a pessoa ou a autoria da imagem. Era uma foto bela e delicada, entre a pintura de Jon Muth e de Gerhard Richter, feita em baixíssima definição, o que me impediria de utiliza-la como obra, por isso nunca pedi a autorização da moça em questão para usa-la. E também por se tratar de um exercício de educação do olhar, como muitos outros que realizei durante minha formação como artista. Recordo-me que o evento me chateou até o momento em que considerei que eu mesma me apropriara de uma obra de RES: "Museu: Mundo de Coisas Vivas", com sua devida autorização e até mesmo incentivo (outro exercício que nunca chegou a ser exposto como obra). Posteriormente, utilizei-me de uma fotografia de Leonardo Kossoy, também colada sobre um caderno, no projeto Com.E.Nos (não autorizada, mas com a devida referência a autoria). Parte de minha pesquisa como artista, no começo de minha formação, foi a apropriação como linguagem. Pesquisa essa que migrou para a aproximação entre vida e arte, o que resultou na prática de autorretratos por quatro anos e depois para a produção de vídeos com a participação de amigos.  Possuo um espólio de vídeos que tenho postado no Youtube, com a devida autorização (verbal ou escrita) desses colaboradores, que possuem total controle sobre o uso de sua imagem por mim, o que significa que se não me autorizarem, não a utilizo. Uma das participantes do projeto não apreciou o recorte de nosso diálogo e, devido a isso, o vídeo nunca foi publicado. O que talvez ainda me incomode sobre essa imagem da jovem mulher é que ela, desafeita a exposições de arte, anos depois ainda não sabe que sua imagem foi utilizada por um artista em uma obra. Como os transeuntes do Centro, que aparecem nas fotografias tiradas da janela do ateliê de um amigo artista, não sabem que suas imagens são vinculadas na Internet. Ou os "estranhos" de Arbus não deviam ter consciência de que suas imagens tornariam-se históricas e que seriam reproduzidas infinitamente em livros de arte e fotografia. Digo o mesmo sobre os anônimos nas imagens de Cartier-Bresson ou Sebastião Salgado e muitos outros brilhantes artistas e fotógrafos. "A foto pode mostrar um rosto, um objeto, um acontecimento qualquer. Mas o que aparece é convocado, é citado a comparecer no dia do Juízo Final. A eterna repetição é aqui uma chave secreta da apokatastasis, da infinita recapitulação de uma existência. Mas o sujeito fotografado exige algo de nós: aquela pessoa, aquele rosto, exigem seu nome, exigem que não sejam esquecidos." (Giorgio Aganbem).
O escritor Grégorie Boiullier não teria como saber que sua carta de rompimento com a artista Sophie Calle seria exposta pelo mundo na exposição Cuide de Você. Todas as imagens da obra foram devidamente elaboradas e produzidas em co-parceria entre a artista e os participantes. Sophie com certeza sabe como transformar um evento pessoal em obra de arte, ressignificando sua própria experiência e transcendendo-a em plástica. E Grégorie soube contemporizar a auto exposição de sua intimidade. 
Mas "o que aparece"  o rosto deduas mulheres que passam de bicicleta na Escócia, a vitrina de uma loja em Paris é convocado, é citado para comparecer no Dia do Juízo
Nesta semana, fui surpreendida sendo involuntariamente catapultada para dentro de um projeto artístico de um casal de jovens artistas, através do Facebook, por tê-los adicionados a meu perfil por termos amigos em comum. Não citarei seus nomes e tampouco do projeto, para preservar suas identidades e não comprometer a efetividade do mesmo. E, embora tenha sido co-autora do livro Crimes na Rede, sou usuária contumaz das redes sociais e, principalmente, do Facebook, onde dialogo com amigos  próximos ou distantes, compartilho ideias e projetos profissionais. Há muito não pensava sobre essa questão da privacidade, embora seja bastante importante para mim preserva-la. Em outras palavras, tendo a confiar nas pessoas e sou aberta. Não é incomum que pessoas que conheci virtualmente confiem em mim a ponto de expor ideias, idiossincrasias, projetos de vida... Em nenhum momento, quando interajo com elas, sendo  artista e escritora, penso em utilizar suas identidades como base para minha obra literária ou visual. Uma referência ou outra pode acontecer, mas o meu esforço de preservar sua privacidade é tão grande que muitas vezes sacrifico  uma possibilidade criativa nisso. Haja visto um projeto com uma dileta amiga de que nossos diálogos virtuais se transformem numa obra literária cujo nome seria Cartas ao Feminino, esteja parado. O esforço de preservar a identidade e privacidade de pessoas que citamos nas cartas é tal, como separar pequenos diamantes na miríade do deserto, que sabemos que nos consumirá muito tempo sobre algo que praticamente nasceu pronto. 
Esse projeto artístico virtual que cito, muito bem elaborado e cuja escrita foi muito bem estruturada, tem uma base teórica e um estofo filosófico bastante interessantes. E em momento algum eu questiono a sua validade como arte. O que me incomoda é a falácia da abordagem. Até o presente momento, ao interagir com os personagens, ainda não sei onde termina a realidade e começa a ficção. E sei que, mesmo não tendo autorizado em momento algum minha participação no projeto ou a publicação de minhas declarações no mesmo, corro o risco de que isso aconteça. O mesmo risco de ter minha imagem captada por um atirador de elite no telhado e infinitamente reproduzida na rede. 

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